domingo, 14 de março de 2010

Comentarios de Filmes


300
Ao assistir ao filme 300 percebi que, se há vida, ela tende a derramar-se na alegria e na construção, no combate e na destruição. O que vi na tela foi a figuração de um importante conceito da filosofia nietzschiana: a vontade de poder. Todavia, não farei análises a respeito da graphic novel desenhada e escrita por Frank Miller, nem sobre as incoerências históricas por ele provocadas e que foram transpostas para a telona no longa-metragem dirigido por Zack Snyder. Importa mais o conceito nietzschiano e como ele transparece no filme.

Vemos em cena 300 espartanos, comandados pelo rei Leônidas, marchando para o estreito desfiladeiro de Termópilas (literalmente, “portas quentes”) contra o exército persa, sob o comando do rei Xerxes. Os espartanos sabiam que rumavam para a morte. Onde, então, está a questão da vontade de poder?

Comentando o seu primeiro livro (O Nascimento da Tragédia) no Ecce Homo (aforismos 1 a 3), Friedrich Nietzsche (1844-1900) afirma que os gregos superaram seu pessimismo mediante a arte
trágica como gênero poético-musical. Não significa, contudo, que eram “otimistas” no sentido frouxo que damos a esta palavra. O grego antigo tornou-se dionisíaco. Este caracteriza-se por ser trágico, pois vê a existência como prazerosa, alegre, mesmo em meio ao sofrer mais duro, absurdo, estranho e questionável que esta mesma existência comporta. Sem fugir do sofrimento, o homem dionisíaco afirma a vida indestrutível e jubilosa.

Não poderia ser diferente para os antigos. A existência dos helenos era muito dura: viviam sempre à sombra de invasões por outras nações, em uma terra pouco fértil. Poderiam ter se transformado em um povo temeroso e pessimista. Não foi o que aconteceu: afirmaram a si mesmos com toda coragem de que eram capazes, sem negar o real em que viviam. Força e dureza tomaram conta deles porque era preciso sobreviver.

Observe-se no filme a entrada de gregos vindos da Arcádia – uma região difícil de viver devido ao seu solo pobre – para combaterem junto com os espartanos. Poderiam ter saído dali homens valorosos, mas eram pessimistas e covardes, e como soldados, inexperientes. Aí se observa o enfraquecimento da vontade.







Arte no sofrimento E, na adversidade mais terrível, os helenos produziram arte. Para suportarem tal existência e não caírem em uma desmesura de força que os destruiria, criaram elementos artísticos e políticos. Principalmente a arte trágica: homens e deuses se confrontando; vida e destino; a vivência da realidade sem transcendências em um pós-morte;
a afirmação de si quando tudo leva ao oposto. A raça grega era uma exceção. A batalha nas Termópilas é exemplar de uma raça forte que afirma a vida mesmo diante da morte certa. Nietzsche está certo quando escreve que os “homens mais espirituais, pressupondo-se que sejam os mais corajosos, também experimentam as mais dolorosas tragédias: mas justamente por isso honram a vida, porque ela lhes opõe o seu máximo antagonismo” (Crepúsculo dos Ídolos, Incursões de um extemporâneo, aforismo 17).

O homem superior aprendeu a duras penas como fazer de sua existência algo de belo. “Beleza” é buscar superar a si mesmo, não se perceber como um sujeito qualquer, preocupado em consumir, divertir-se ingenuamente, iludido de que é feliz. O artista busca exercer sua vontade de poder em meio à dureza da vida. Exemplo disso é a educação da criança espartana desde a casa até a formação militar, que a ensina a não retroceder nem se render. Diante da ameaça de “arrebanhamento” imposta por Xerxes, a atitude de Leônidas é esbravejar ao mensageiro persa que a recusa à escravidão não é uma loucura, mas que “Isso é Esparta!”. Os espartanos dizem “Não!” para afirmarem um “Sim!” que os atira na batalha. Exercem seu instinto de combate.

Apolíneo e dionisíaco
Percebe-se uma união entre excesso e disciplina, medida e desmesura. É o que Nietzsche chamou de apolíneo e dionisíaco. Apolo é o lado visionário do humano: ele visualiza a si mesmo afirmando-se numa embriaguez de formas, limites, e expressão. Dionísio é a embriaguez: é a transgressão dos limites; é a excitada expressão da vida em prazer/terror, é a vida afirmativa (Crepúsculo dos Ídolos, Incursões de um extemporâneo, aforismo 34).

O par Apolo-Dionísio encontra-se, por exemplo, na forma da falange espartana, a qual explode em violência contra os inimigos
sem perder sua formação. É a embriaguez da vontade que se avoluma e descarrega: os soldados não se detêm ante a glória para a qual marcharam.

O homem superior cria por afirmar sua vontade de poder, não se deixando levar pelo obscurantismo religioso e político: veja-se a cena em que a esposa de Leônidas pergunta a ele, diante do seu dilema, não o que um espartano ou um rei deveria fazer, mas o que um homem livre faria. A vontade de poder reflete os imperativos da realidade vivida com suas demandas. Leônidas não se curva aos éforos e sua ganância, nem ao “divino” Xerxes, este representando a vontade de aniquilamento a tudo que não seja ele mesmo.






Mas a vontade de poder pode se manifestar em seu oposto: a vida que se condena; que apenas reage em vez de criar e agir: o ressentimento.
O ressentido é o típico homem inferior levado pelo que Nietzsche chama de “moral escrava”: moral que considera “mau” o homem superior que afirma sua vontade de poder (Genealogia da Moral, 1ª dissertação, aforismo 10). O ressentido é um “animal de rebanho” venenoso em seu pensar e no sentir, rancoroso, e cuja fraqueza precisa de apoio: no filme, o traidor Elfiates, figura bem o ressentimento quando culpa Leônidas por sua incapacidade guerreira.

O homem superior não quer sua autoconservação, mas procura dar “vazão a sua força” (Além do Bem e do Mal, aforismo 13). Ele busca sua glória. No filme, Leônidas envia de volta a Esparta apenas um soldado, para que ninguém esquecesse o que acontecera nas Termópilas: a memória é a garantia da imortalidade.

Num fragmento de 1887, Nietzsche escreveu: “O homem é um não-animal e o além-do-homem. O homem superior é não-homem
e o além-do-homem: de modo que isso se entrepertence. Com todo crescimento do homem em grandeza e elevação, cresce ele também no profundo e terrível: não se deve querer uma dessas coisas sem a outra – ou, muito mais, quanto mais fundamentalmente se quer uma coisa, tanto mais fundamentalmente se alcança precisamente a outra”. No profundo e terrível existe grandeza e elevação. O homem superior morre com suas armas e cria-se como artista/obra. E ainda pode permanecer num simples objeto. No final, a esposa de Leônidas coloca no filho o colar que pertencera ao esposo: o eterno retorno da nobreza guerreira na forma da criança que será moldada em força e dureza. A criança que fará retornar o homem superior. Como guerreiro.