domingo, 14 de novembro de 2010

Quem somos Nós?

Este é um filme sobre física quântica. A visão de mundo e de ciência sendo apresentada lembra bastante a tendência da revista Superinteressante: "a ciência da felicidade". Uma mistura bizarra de curiosidades científicas superficiais com auto-ajuda. É na prática a ramificação cientificista da auto-ajuda, e em essência continua promovendo a mesma coisa: "Não se preocupe com as causas globais, elimine os efeitos pessoais e seja feliz". A onda agora é embarcar em "novos paradigmas". Este novo paradigma realmente quebra os conceitos-chave do velho ou é apenas uma extensão dele? O velho paradigma é representado pelo mecanicismo, pelo determinismo e pelo cartesianismo. O novo paradigma é influenciado pela era da informação e dos computadores, criticando a era industrial. O universo não pode mais ser visto como uma máquina comum, mas sim como um grande computador, feito de bits e bytes. Uma máquina avançada, mais complexa, com novas regras que "unificam" todos os seres. Somos todos um só. Elevam o grau do reducionismo ao extremo. Não é o computador apenas o próximo passo lógico do relógio? Este novo paradigma é na verdade uma grande vitória do dogmatismo científico. É tudo que ele critica elevado ao quadrado. Algumas regras mudam, mas a essência continua a mesma. É uma mudança necessária para a que a natureza seja melhor "explicada" termos de matemática. Ou seja, para que a natureza seja ainda mais humanizada, com a desculpa de que assim estaríamos entendendo-a melhor e ao mesmo tempo entendendo a nós mesmos... Outra hipótese, que pode ser descartada por um amante das ciências, é que estamos apenas dando um passo além na conformação a realidade natural a um ideal mental e artificial, enquanto os interesses econômicos e políticos por trás disso são completamente ignorados. As implicações do novo paradigma são aparentemente maravilhosas para a vida humana, mas assim também parecia às pessoas quando paradigma anterior surgiu. Levou anos para perceber as reais e desastrosas conseqüências do mecanicismo. Toda a visão de mundo foi moldada em torno da maravilha tecnológica da época: o relógio. As leis da física eram um incrível mistério, mexiam com a imaginação das pessoas. Elas ainda têm as mesmas expectativas em relação à física que tinham na época de Newton: esperam que ela salve o mundo, ou pelo menos tornem suas vidas melhores. O novo paradigma é tão cientificista quanto o antigo, com o computador e o holograma como as novas maravilhas tecnológicas ao redor das quais a nova visão de mundo se molda. Com que bases eu faço essa acusação? Supostamente é preciso uma ciência mais "avançada" para criticar a ciência anterior. A "ciência", se é que merece esse nome, está presa num ciclo de feedback positivo da qual jamais poderá se libertar, enquanto não deixar de lado seu papel de "salvadora" e "detentora da verdade". A relação com a religião também é basicamente a mesma, mas agora se baseia mais na mística oriental que na mística cristã européia. Não se afasta muito dos textos de teológicos medievais que tentavam provar um "deus racional", e tinham incríveis fundamentações matemáticas. A crítica à religião não deixa de ser religiosa e até mesmo um tanto intolerante, colocando a culpa dos males do mundo nas outras religiões, e tentando substituí-las por uma religião científica, como se fosse a única válida apenas por ser "científica". Mas esta religião não tem nada de novo, é a velha religião salvacionista com novos termos, na velha tentativa de unir os homens em torno do mesmo conceito de deus. Este conceito de deus não deixa de ser artificial. Mais especificamente, não deixa de servir aos interesses da cultura dominante. Uma das mudanças do novo paradigma é a influência do observador. O objetivo da ciência sempre foi determinar uma verdade independente de qualquer observador, ou seja, uma regra geral. Isso permitia afirmar a superioridade da mente humana em relação ao mundo material. Agora a própria realidade depende do observador. O observador não está mais separado do fenômeno, a realidade depende dele para existir. O funcionamento do mundo é basicamente explicado pelo funcionamento da mente. Este é o antropocentrismo levado ao extremo. É neste sentido que este novo paradigma é apenas um passo além na mesma direção. É um grande projeto de transformar a vida em algo artificial, matemático, simbólico, destituído de valor próprio. De retirar da experiência "sagrada" todo valor intrínseco e substituir por valores humanos, culturais e utilitários. Ao mesmo tempo de dar alívio e conforto ao sofrimento de viver num mundo sem sentido próprio, prometendo juventude, felicidade, saúde, harmonia, etc... As velhas promessas de "evolução" ou "iluminação" do homem através de um autoconhecimento linear. Fica implícito nesta promessa o aumento da dependência tecnológica e a idéia de que a racionalidade humana é o objetivo central da evolução do universo. O filme tenta infiltrar o seguinte meme na cabeça do espectador: a realidade é maleável, basta pensar positivo e tudo pode acontecer! Junto com esse meme é propagada a idéia de que nós somos o novo critério da nossa própria evolução, não precisamos mais nos adaptar ao meio. Também conhecido pelo dogma: não mais evoluímos, apenas progredimos. É como dizer: "Esqueça o equilíbrio do ecossistema, nós adaptamos o meio a nós! Podemos mudar o que quisermos em nós mesmos, podemos ser nossos próprios artífices e levar em consideração apenas nossos próprios desejos e necessidades". Afirmar que nós somos deuses é apenas o próximo passo lógico de afirmar que somos os favoritos de deus. Justifica o fato de subjugarmos o mundo, e é exatamente o que os dominadores esperam e querem ouvir: uma justificativa científica nova e atraente para suas ações irresponsáveis. Mas para a maioria das pessoas, é apenas um filme inocente que só quer o nosso "bem", nos deixando mais tranqüilos e harmonizados enquanto nos entregamos voluntariamente à miséria e a degradação social. Como as pessoas respeitam a autoridade dos filmes e dos doutores estadunidenses, a tendência é que esse tipo auto-ajuda apenas aumente, infelizmente.