quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Reflexao Filosófica

A Reflexão Filosófica

Publicidade

Reflexão significa movimento de volta sobre si mesmo ou movimento de retorno a si mesmo. A reflexão é o movimento pelo qual o pensamento volta-se para si mesmo, interrogando a si mesmo.

A reflexão filosófica é tida como radical porque é um movimento de volta do pensamento sobre si mesmo para conhecer-se a si mesmo, para indagar como é possível o próprio pensamento. Não somos, porém, somente seres pensantes. Somos também seres que agem no mundo, que se relacionam com os outros seres humanos, com os animais, as plantas, as coisas, os fatos e acontecimentos, e exprimimos essas relações tanto por meio da linguagem quanto por meio de gestos e ações.

A reflexão filosófica também se volta para essas relações que mantemos com a realidade circundante, para o que dizemos e para as ações que realizamos nessas relações. A reflexão filosófica organiza-se em torno de três grandes conjuntos de perguntas ou questões:

  1. por que pensamos o que pensamos, dizemos o que dizemos e fazemos o que fazemos?
  2. o que queremos pensar quando pensamos, o que queremos dizer quando falamos, o que queremos fazer quando agimos? Isto é, qual é o conteúdo ou o sentido do que pensamos, dizemos ou fazemos?
  3. para que pensamos o que pensamos, dizemos o que dizemos, fazemos o que fazemos? Isto é, qual a intenção ou a finalidade do que pensamos, dizemos e fazemos?

Essas três questões podem ser resumidas em: o que é pensar, falar e agir? E elas pressupõem a seguinte pergunta: nossas crenças cotidianas são ou não um saber verdadeiro, um conhecimento? A atitude filosófica inicia-se indagando: o que é?, como é?, por que é?, dirigindo-se ao mundo que nos rodeia e aos seres humanos que nele vivem e com ele se relacionam. São perguntas sobre a essência, a significação ou a estrutura e a origem de todas as coisas.

A reflexão filosófica, por sua vez, indaga: por quê?, o quê?, para quê?, dirigindo-se ao pensamento, aos seres humanos no ato da reflexão. São perguntas sobre a capacidade e a finalidade humanas para conhecer e agir.

O que tornou possível o surgimento da filosofia aos arredores da Grécia no final do século VII e no início do século VI antes de Cristo? Quais as condições materiais, isto é, econômicas, sociais, políticas e históricas que permitiram o surgimento da filosofia?

Podemos apontar como principais condições históricas:

As Viagens Marítimas

Que permitiram aos povos descobrir que os locais que os mitos diziam habitados por deuses, titãs e heróis eram, na verdade, habitados por outros seres humanos; e que as regiões dos mares que os mitos diziam habitadas por monstros e seres fabulosos não possuíam nem monstros nem seres fabulosos. As viagens produziram o desencantamento ou a desmitificação do mundo, que passou, assim, a exigir uma explicação sobre a origem, explicação que o mito já não podia oferecer;

A Invenção do Calendário

Que é uma forma de calcular o tempo segundo as estações do ano, as horas do dia, os fatos importantes que se repetem, revelando, com isso, uma capacidade de abstração nova, ou uma percepção do tempo como algo natural e não como um poder divino incompreensível;

A Invenção da Moeda

Que permitiu uma forma de troca que não se realiza através das coisas concretas ou dos objetos concretos trocados por semelhança, mas uma troca abstrata, uma troca feita pelo cálculo do valor semelhante das coisas diferentes, revelando, portanto, uma nova capacidade de abstração e de generalização;

O Surgimento da Vida Urbana

Com predomínio do comércio e do artesanato, dando desenvolvimento a técnicas de fabricação e de troca, e diminuindo o prestígio das famílias da aristocracia proprietária de terras, por quem e para quem os mitos foram criados; além disso, o surgimento de uma classe de comerciantes ricos, que precisava encontrar pontos de poder e de prestígio para suplantar o velho poderio da aristocracia de terras e de sangue (as linhagens constituídas pelas famílias), fez com que se procurasse o prestígio pelo patrocínio e estímulo às artes, às técnicas e aos conhecimentos, favorecendo um ambiente onde a filosofia poderia surgir;

A Invenção da Escrita Alfabética

Que como a do calendário e a da moeda, revela o crescimento da capacidade de abstração e de generalização, uma vez que a escrita alfabética ou fonética, diferentemente de outras escritas — como, por exemplo, os hieróglifos dos egípcios ou os ideogramas dos chineses — supõe que não se represente uma imagem da coisa que está sendo dita, mas a idéia dela, o que dela se pensa e se transcreve;

A Invenção da Política

Que introduz três aspectos novos e decisivos para o nascimentos da filosofia:

1. A idéia da lei como expressão da vontade de uma coletividade humana que decide por si mesma o que é melhor para si e como ela definirá suas relações internas. O aspecto legislado e regulado da cidade — da — servirá de modelo para a filosofia propor o aspecto legislado, regulado e ordenado do mundo como mundo racional;

2. O surgimento de um espaço público, que faz aparecer um novo tipo de palavra ou de discurso, diferente daquele que era proferido pelo mito. Neste, o poeta-vidente, que recebia das deusas ligadas à memória (a deusa Mnemosyne, mãe das Musas que guiavam o poeta) uma iluminação misteriosa ou uma revelação sobrenatural, dizia aos homens quais eram as decisões dos deuses a que eles deveriam obedecer.

Agora, com a , isto é, a cidade política, surge a palavra como direito de cada cidadão de emitir em público sua opinião, discuti-la com os outros, persuadi-los a tomar uma decisão proposta por ele, de tal modo que surge o discurso político como a palavra humana compartilhada, como diálogo, discussão e deliberação humana, isto é, como decisão racional e exposição dos motivos ou das razões para fazer ou não fazer alguma coisa. A política, valorizando o humano, o pensamento, a discussão, a persuasão e a decisão racional, valorizou o pensamento racional e criou condições para que surgisse o discurso ou a palavra filosófica.

3. A política estimula um pensamento e um discurso que não procuram ser formulados por seitas secretas dos iniciados em mistérios sagrados, mas que procuram, ao contrário, ser públicos, ensinados, transmitidos, comunicados e discutidos. A idéia de um pensamento que todos podem comunicar e transmitir, é fundamental para a filosofia.

A filosofia não é um “eu acho que” ou um “eu gosto de”. Não é pesquisa de opinião à maneira dos meios de comunicação de massa. Não é pesquisa de mercado para conhecer preferências dos consumidores e criar uma propaganda.

As indagações filosóficas se realizam de modo sistemático.

Que significa isso?

Significa que a filosofia trabalha com enunciados precisos e rigorosos, busca encadeamentos lógicos entre os enunciados, opera com conceitos ou idéias obtidos por procedimentos de demonstração e prova, exige a fundamentação racional do que é enunciado e pensado. Somente assim a reflexão filosófica pode fazer com que nossa experiência cotidiana, nossas crenças e opiniões alcancem uma visão crítica de si mesmas. Não se trata de dizer “eu acho que”, mas de poder afirmar “eu penso que”.

O conhecimento filosófico é um trabalho intelectual. É sistemático porque não se contenta em obter respostas para as questões colocadas, mas exige que as próprias questões sejam válidas e, em segundo lugar, que as respostas sejam verdadeiras, estejam relacionadas entre si, esclareçam umas às outras, formem conjuntos coerentes de idéias e significações, sejam provadas e demonstradas racionalmente.

Quando o senso comum diz “esta é minha filosofia” ou “isso é a filosofia de fulana ou de fulano”, engana-se e não se engana.

Engana-se porque imagina que para “ter uma filosofia” basta alguém possuir um conjunto de idéias mais ou menos coerentes sobre todas as coisas e pessoas, bem como ter um conjunto de princípios mais ou menos coerentes para julgar as coisas e as pessoas. “Minha filosofia” ou a “filosofia de fulano” ficam no plano de um “eu acho” coerente.

Mas o senso comum não se engana ao usar essas expressões porque percebe, ainda que muito confusamente, que há uma característica nas idéias e nos princípios que nos leva a dizer que são uma filosofia: a coerência, as relações entre as idéias e entre os princípios. Ou seja, o senso comum pressente que a filosofia opera sistematicamente, com coerência e lógica, que a filosofia tem uma vocação para formar um todo daquilo que aparece de modo fragmentado em nossa experiência cotidiana. e

Para explicar o movimento de passagem de um grau de conhecimento para o outro, no Livro VII da República, Platão narra o Mito da Caverna, alegoria da teoria do conhecimento e da paidéia platônicas. Para conhecermos esse mito, precisamos retomar, noutro nível, a exposição da teoria do conhecimento feita nas aulas anteriores, pois essa versão apresentada deixou de lado a beleza, a dramaticidade e as metáforas que tecem o Livro VI da República.

Para dar a entender ao jovem Glauco o que é e como se adquire o conhecimento verdadeiro, Sócrates começa estabelecendo uma analogia entre conhecer e ver.

Ilustação do Mito da Caverna

Ilustação do Mito da Caverna

Todos nossos sentidos, diz Sócrates, mantêm uma relação direta com o que sentem. Não é esse, porém, o caso da visão. Para que a visão se realize, não bastam os olhos (ou a faculdade da visão) e as coisas coloridas (pois vemos cores e são elas que desenham a figura, o volume e as demais qualidades da coisa visível), mas é preciso um terceiro elemento que permita aos olhos ver e às coisas serem vistas: para que haja um visível visto é preciso a luz. A luz não é o olho nem a cor, mas o que faz com que o olho veja a cor e que a cor seja vista pelo olho. É graças ao Sol que há um mundo visível. Por que as coisas podem ser vistas? Porque a cor é filha da luz. Por que os olhos são capazes de ver? Porque são filhos do Sol: são faróis ou luzes que iluminam as coisas para que se tornem visíveis. A visão é, assim, uma atividade e uma passividade dos olhos. Atividade, porque é a luz do olhar que torna as coisas visíveis. Passividade, porque os olhos recebem sua luz do Sol.

Conhecer a verdade é ver com os olhos da alma ou com os olhos da inteligência. Assim como o Sol dá sua luz aos olhos e às coisas para que haja mundo visível, assim também a idéia suprema, a idéia de todas as idéias, o Bem (isto é, a perfeição em si mesma) dá à alma e às idéias sua bondade (sua perfeição) para que haja mundo inteligível. Assim como os olhos e as coisas participam da luz, assim também a alma e as idéias participam da bondade (ou perfeição) e é por isso que a alma pode conhecer as idéias. E assim como a visão é passividade e atividade do olho, assim também o conhecimento é passividade e atividade da alma: passividade, porque a alma precisa receber a ação das idéias para poder contemplá-las; atividade, porque essa recepção e contemplação constituem a própria natureza da alma.

Assim como na treva não há visibilidade, assim também na ignorância não há verdade. A e a são para a alma o que a cegueira é para os olhos e a escuridão é para as coisas: são privações (privação de visão e privação de conhecimento).

Sob a analogia da luz, a diferença entre o sensível e o inteligível se apresenta assim:

MUNDO SENSÍVEL

MUNDO INTELIGÍVEL

Sol
Luz
Cores
Olhos
Visão
Treva, cegueira
Privação de luz

Bem
Verdade

Idéias
Alma racional ou inteligência
Intuição
Ignorância, opinião

Privação de verdade

Essa analogia é o tema do Mito da Caverna, narrado por Sócrates a Glauco para fazê-lo compreender o sentido da paidéia filosófica, isto é, da dialética e do conhecimento verdadeiro.

Imaginemos, diz Sócrates, uma caverna subterrânea separada do mundo externo por um alto muro. Entre este e o chão da caverna há uma fresta por onde passa alguma luz exterior, deixando a caverna na obscuridade quase completa.

Desde seu nascimento, geração após geração, seres humanos ali estão acorrentados, sem poder mover a cabeça na direção da entrada, nem se locomover, forçados a olhar apenas a parede do fundo, vivendo sem nunca ter visto o mundo exterior nem a luz do Sol, sem jamais ter efetivamente visto uns aos outros, pois não podem mover a cabeça nem o corpo, e sem se ver a si mesmos porque estão no escuro e imobilizados. Abaixo do muro, do lado de dentro da caverna, há um fogo que ilumina vagamente o interior sombrio e faz com que as coisas que se passam do lado de fora sejam projetadas como sombras nas paredes do fundo da caverna.

Do lado de fora, pessoas passam conversando e carregando nos ombros figuras ou imagens de homens, mulheres, animais cujas sombras também são projetadas na parede da caverna, como num teatro de fantoches. Os prisioneiros julgam que as sombras de coisas e pessoas, os sons de suas falas e as imagens que transportam nos ombros são as próprias coisas externas, e que os artefatos projetados são seres vivos que se movem e falam.

Nesse ponto, Glauco diz a Sócrates que o quadro descrito por ele lhe parece algo estranho, incomum e inusitado. Sócrates, porém, diz-lhe que os prisioneiros “são semelhantes a nós”. E prossegue. Os prisioneiros se comunicam, dando nomes às coisas que julgam ver (sem vêlas realmente, pois estão na obscuridade) e imaginam que o que escutam, e que não sabem que são sons vindos de fora, são as vozes das próprias sombras e não vozes dos seres reais. Qual é, pois, a situação dessas pessoas aprisionadas?

Tomam sombras por realidade, tanto as sombras das coisas e dos homens exteriores como as sombras dos artefatos fabricados por eles. Essa confusão, porém, não tem como causa a natureza dos prisioneiros e sim as condições adversas em que se encontram. Por isso Sócrates indaga: que aconteceria se fossem libertados dessa condição de miséria e, “retornando à sua natureza, pudessem ver as coisas e ser curados de sua ignorância?”.

Essa pergunta é um tanto grave. De fato, para os prisioneiros, o único mundo real é a caverna, portanto, a obscuridade na qual não podem se ver nem ver os outros não é percebida como tal e sim experimentada como realidade verdadeira. E a caverna é para eles todo o mundo real, pois não sabem que o que vêem na parede do fundo são sombras de um outro mundo, exterior à caverna, uma vez que não podem virar a cabeça para ver que há algo lá fora e que é de lá de fora que outros homens lhes enviam imagens e sons.

Ora, se para os prisioneiros o mundo real é a caverna, como poderiam sair da ilusão se não sabem que vivem nela?

Um dos prisioneiros, inconformado com a condição em que se encontra, decide abandoná-la. Fabrica um instrumento com o qual quebra os grilhões. De início, move a cabeça, depois o corpo todo; a seguir, avança na direção do muro e o escala. Enfrentando as durezas de um caminho íngreme e difícil, sai da caverna. No primeiro instante, fica totalmente cego pela luminosidade do Sol, com a qual seus olhos não estão acostumados. Enche-se de dor por causa dos movimentos que seu corpo realiza pela primeira vez e pelo ofuscamento de seus olhos sob a ação da luz externa, muito mais forte do que o fraco brilho do fogo que havia no interior da caverna. Sente-se dividido entre a incredulidade e o deslumbramento. Incredulidade porque está obrigado a decidir onde se encontra a realidade: no que vê agora ou nas sombras em que sempre viveu. Deslumbramento (literalmente: ferido pela luz) porque seus olhos não conseguem ver com nitidez as coisas iluminadas. Seu primeiro impulso é retornar à caverna para livrar-se da dor e do espanto. Embora esteja reconquistando sua verdadeira natureza, o sofrimento que essa reconquista lhe traz é tão grande que se sente atraído pela escuridão, que lhe parece mais acolhedora. Além disso, precisa aprender a ver e esse aprendizado é doloroso, fazendo-o desejar a caverna, onde tudo lhe é familiar e conhecido.

A descrição platônica é dramática: o caminho em direção ao mundo exterior é íngreme e rude; o prisioneiro libertado sofre e se lamenta de dores no corpo; a luz do Sol o cega; ele se sente arrancado, puxado para fora por uma força incompreensível. Platão narra um parto: o parto da alma que nasce para a verdade e é dada à luz.

Sentindo-se sem disposição para regressar à caverna por causa da rudeza do caminho, o prisioneiro permanece no exterior. Aos poucos, habitua-se à luz e começa a ver o mundo. Encanta-se, tem a felicidade de finalmente ver as próprias coisas, descobrindo que estivera prisioneiro a vida toda e que em sua prisão vira apenas sombras. Doravante, desejará ficar longe da caverna para sempre e lutará com todas as suas forças para jamais regressar a ela. No entanto, não pode evitar lastimar a sorte dos outros prisioneiros e, por fim, toma a difícil decisão de regressar ao subterrâneo sombrio para contar aos demais o que viu e convencê-los a se libertarem também.

Assim como a subida foi penosa, porque o caminho era ingrato e a luz, ofuscante, também o retorno será penoso, pois será preciso habituar-se novamente às trevas, o que é muito mais difícil do que se habituar à luz. De volta à caverna, o prisioneiro fica cego novamente, mas, agora, por ausência de luz. Ali dentro, é desajeitado, inábil, não sabe mover-se entre as sombras nem falar de modo compreensível para os outros, não sendo acreditado por eles. Torna-se objeto de zombaria e riso, e correrá o risco de ser morto pelos que jamais se disporão a abandonar a caverna. Impossível aqui não identificar a figura de Sócrates na do prisioneiro que se liberta, retorna e é morto pelos homens das sombras.

A caverna, explica Sócrates a Glauco, é o mundo sensível onde vivemos. O fogo que projeta as sombras na parede é um reflexo da luz verdadeira (do Bem e das idéias) sobre o mundo sensível. Somos os prisioneiros. As sombras são as coisas sensíveis, que tomamos pelas verdadeiras, e as imagens ou sombras dessas sombras, criadas por artefatos fabricados de ilusões. Os grilhões são nossos preconceitos, nossa confiança em nossos sentidos, nossas paixões e opiniões. O instrumento que quebra os grilhões e permite a escalada do muro é a dialética. O prisioneiro curioso que escapa é o filósofo. A luz que ele vê é a luz plena do ser, isto é, o Bem, que ilumina o mundo inteligível como o Sol ilumina o mundo sensível. O retorno à caverna para convidar os outros a sair dela é o diálogo filosófico, e as maneiras desajeitadas e insólitas do filósofo são compreensíveis, pois quem contemplou a unidade da verdade já não sabe lidar habilmente com a multiplicidade das opiniões nem se mover com engenho no interior das aparências e ilusões.

Os anos despendidos na criação do instrumento para sair da caverna são o esforço da alma para libertar-se. Conhecer é, pois, um ato de libertação e de iluminação. A paidéia filosófica é uma conversão da alma voltando-se do sensível para o inteligível. Essa educação não ensina coisas nem nos dá a visão, mas ensina a ver, orienta o olhar, pois a alma, por sua natureza, possui em si mesma a capacidade para ver.

O Mito da Caverna apresenta a dialética como movimento ascendente de libertação do olhar intelectual que nos livra da cegueira para vermos a luz das idéias. Mas descreve também o retorno do prisioneiro para convidar os que permaneceram na caverna a sair dela, ensinando-lhes como quebrar os grilhões e subir o caminho. Há, assim, dois movimentos: o de ascensão (a dialética ascendente), que vai da imagem à crença ou opinião, desta para as matemáticas e destas para a intuição intelectual e a ciência; e o do descenso (a dialética descendente), que consiste em praticar com outros o trabalho para subir até às idéias.

Os olhos foram, portanto, feitos para ver, a alma foi feita para conhecer. Os primeiros estão destinados à luz solar, a segunda, à fulguração/revelação da idéia. A dialética é a técnica que liberta os “olhos do espírito”.

O relato da subida e da descida expõe a paidéia como dupla violência necessária para a liberdade e para a realização da natureza verdadeira da alma: a ascensão é difícil, dolorosa, quase insuportável; o retorno à caverna, uma imposição terrível à alma libertada, agora forçada a abandonar a luz e a felicidade. A dialética, como toda técnica, é uma atividade exercida contra uma passividade, é um esforço para obrigar uma dÚnamij a se atualizar, um trabalho para concretizar um fim, forçando um ser a realizar sua própria natureza. No Mito da Caverna, a dialética leva a alma a ver sua própria essência ou forma (), isto é, conhecer, vendo as essências ou formas, para descobrir seu parentesco com elas, pois a alma é parente da idéia como os olhos são parentes da luz.

Para que Filosofia?

Ora, muitos fazem esta pergunta: afinal, para que filosofia?

É uma pergunta interessante. Não vemos nem ouvimos ninguém perguntar, por exemplo, para que matemática ou física, para que geografia ou geologia, para que história ou sociologia, para que biologia ou psicologia, para que astronomia ou química, para que pintura, literatura, música ou dança? Mas todo mundo “acha” muito natural perguntar: para que filosofia? Em geral, essa pergunta costuma receber uma resposta irônica, conhecida dos estudantes de filosofia: “a filosofia é uma ciência com a qual e sem a qual o mundo permanece tal e qual”. Ou seja, a filosofia não serve para nada. Por isso, costuma-se chamar de “filósofo” alguém sempre distraído, com a cabeça no mundo da Lua, pensando e dizendo coisas que ninguém entende e que são perfeitamente inúteis. Essa pergunta: “para que filosofia?”, tem a sua razão de ser.

Em nossa cultura e em nossa sociedade, costumamos considerar que alguma coisa só tem o direito de existir se tiver alguma finalidade prática, muito visível e de utilidade imediata.

Por isso, ninguém pergunta para que as ciências, pois todo mundo imagina ver a utilidade das ciências nos produtos da técnica, isto é, na aplicação científica à realidade.

Todo mundo também imagina ver a utilidade das artes, tanto por causa da compra e venda das obras de arte quanto porque nossa cultura vê os artistas como gênios que merecem ser valorizados para o elogio da humanidade. Ninguém, todavia, consegue ver para que serviria a filosofia, donde dizer-se: não serve para nada.

Parece, porém, que o senso comum não percebe algo que os cientistas sabem muito bem. As ciências pretendem ser conhecimentos verdadeiros, obtidos graças a procedimentos rigorosos de pensamento; pretendem agir sobre a realidade, através de instrumentos e objetos técnicos; pretendem fazer progressos nos conhecimentos, corrigindo-os e aumentando-os.

Ora, todas essas pretensões das ciências pressupõem que elas acreditam na existência da verdade, de procedimentos corretos para bem usar o pensamento, na tecnologia como aplicação prática de teorias, na racionalidade dos conhecimentos, porque podem ser corrigidos e aperfeiçoados.

Verdade, pensamento, procedimentos especiais para conhecer fatos, relação entre teoria e prática, correção e acúmulo de saberes: tudo isso não é ciência, são questões filosóficas. O cientista parte delas como questões já respondidas, mas é a filosofia que formula e busca respostas para elas.

Assim, o trabalho das ciências pressupõe, como condição, o trabalho da filosofia, mesmo que o cientista não seja filósofo. No entanto, como apenas os cientistas e filósofos sabem disso, o senso comum continua afirmando que a filosofia não serve para nada. Para dar alguma utilidade à filosofia, muitos consideram que, de fato, a filosofia não serviria para nada se “servir” fosse entendido como a possibilidade de fazer usos teóricos dos produtos filosóficos ou darlhes utilidade econômica, obtendo lucros com eles; consideram também que a filosofia nada teria a ver com a ciência e a técnica.

Para quem pensa dessa forma, o principal para a filosofia não seriam os conhecimentos (que ficam por conta da ciência) nem as aplicações de teorias (que ficam por conta da tecnologia), mas o ensinamento moral e ético. A filosofia seria a arte do bem-viver. Estudando as paixões e os vícios humanos, a liberdade e a vontade, analisando a capacidade de nossa razão para impor limites aos nossos desejos e paixões, ensinando-nos a viver de modo honesto e justo na companhia dos outros seres humanos, a filosofia teria como finalidade ensinar-nos a virtude, que é o princípio do bem-viver.

Essa definição da filosofia, porém, não nos ajuda muito. De fato, mesmo para ser uma arte moral ou ética, ou uma arte do bem-viver, a filosofia continua fazendo suas perguntas desconcertantes e embaraçosas: o que é o homem?; o que é a vontade?; o que é a paixão?; o que é a razão?; o que é o vício?; o que é a virtude?; o que é a liberdade?; como nos tornamos livres, racionais e virtuosos?; por que a liberdade e a virtude são valores para os seres humanos?; o que é um valor?; por que avaliamos os sentimentos e ações humanas?

Assim, mesmo se disséssemos que o objeto da filosofia não é o conhecimento da realidade, nem o conhecimento da nossa capacidade para conhecer, mesmo se disséssemos que o objeto da filosofia é apenas a vida moral ou ética, ainda assim o estilo filosófico e a atitude filosófica permaneceriam os mesmos, pois as perguntas filosóficas - o que, por que e como - permanecem.

Um dos primeiros ensinamentos filosóficos é perguntar: o que é útil? Para que e para quem algo é útil? O que é o inútil? Por que e para quem algo é inútil?

O senso comum de nossa sociedade considera útil o que dá prestígio, poder, fama e riqueza. Julga o útil pelos resultados visíveis das coisas e das ações, identificando utilidade e a famosa expressão “levar vantagem em tudo”. Desse ponto de vista, a filosofia é inteiramente inútil e defende o direito de ser inútil.

Não poderíamos, porém, definir o útil de uma outra maneira?

Platão (428-347 a.C.) definia a filosofia como um saber verdadeiro que deve ser usado em benefício dos seres humanos.

René Descartes (1596-1650) dizia que a filosofia é o estudo da sabedoria, conhecimento perfeito de todas as coisas que os humanos podem alcançar para o uso da vida, a conservação da saúde e a invenção das técnicas e das artes.

Espinosa (1632-1677) afirmou que a filosofia é um caminho árduo e difícil, mas que pode ser percorrido por todos, se desejarem a liberdade e a felicidade.

Immanuel Kant (1724-1804) afirmou que a filosofia é o conhecimento que a razão adquire de si mesma para saber o que pode conhecer e o que pode fazer, tendo como finalidade a felicidade humana.

Karl Marx (1818-1883) declarou que a filosofia havia passado muito tempo apenas contemplando o mundo e que se tratava, agora, de conhecê-lo para transformá-lo, transformação que traria justiça, abundância e felicidade para todos.

Maurice Merleau-Ponty (1908-1961) escreveu que a filosofia é um despertar para ver e mudar nosso mundo.

Qual seria, então, a utilidade da filosofia?

Se abandonar a ingenuidade e os preconceitos do senso comum for útil; se não se deixar guiar pela submissão às idéias dominantes e aos poderes estabelecidos for útil; se buscar compreender a significação do mundo, da cultura, da história for útil; se conhecer o sentido das criações humanas nas artes, nas ciências e na política for útil; se dar a cada um de nós e à nossa sociedade os meios para serem conscientes de si e de suas ações numa prática que deseja a liberdade e a felicidade para todos for útil, então podemos dizer que a filosofia é o mais útil de todos os saberes de que os seres humanos são capazes.